Vizinhos de bairro e namorados desde a adolescência, o bancário Olavo Costa Lima, de 38 anos, e a professora Maria Teresa Palomini, de 39, casaram cedo e logo quiseram ter filhos. Não demoraram a perceber que havia alguma coisa errada. Foram ao médico. Os dois tinham problemas de fertilidade. O de Olavo era irreversível. Havia a possibilidade de um longo tratamento para tentar a inseminação artificial, mas acharam que seria caro e desgastante emocionalmente, pois só 30% dos casos são bem-sucedidos. Em janeiro do ano passado, procuraram um abrigo. Queriam adotar uma criança de 2 ou 3 anos. No primeiro, no Rio de Janeiro, deram de cara com a história de Miguel, de 11 anos. Adotado dois meses antes, ele estava sendo devolvido. O motivo: não gostava de tomar banho. 'Ficamos horrorizados. Mesmo antes de ver o menino, mudamos nossos planos e nos candidatamos a tê-lo como nosso filho', completa Maria Teresa. No fim de semana seguinte, o casal conheceu Miguel. Muito calado, traumatizado com o episódio, foi taxativo com o casal: 'Se gostar de vocês, eu vou'. Foi. Mora com os novos pais há três meses.
A história de Olavo, Maria Teresa e Miguel revela como a adoção no Brasil está mudando. Menino, mais velho e com 'maus antecedentes', Miguel é o oposto do modelo imaginado quando se pensa em adoção. Mas conseguiu uma nova casa porque agora existe uma mentalidade diferente quando se pensa em adoção. A antiga estrutura familiar - papai, mamãe e dois filhos a sua imagem e semelhança - hoje só é regra nos comerciais de margarina. Os números do IBGE mostram que 49% das famílias já não seguem esse padrão. Com isso, dizem os especialistas, a idéia de um filho adotado não causa nenhuma estranheza diante da proliferação de famílias de segundo e terceiro casamentos.
'Procuramos mostrar que a adoção é apenas mais uma das possíveis configurações familiares', diz a psicóloga Claudia Cabral, diretora da ONG Terra dos Homens, que orienta cerca de cem grupos de apoio à adoção no país. O trabalho desses grupos também contribui para a mudança. Nas reuniões, casais que têm filhos adotivos compartilham suas experiências com interessados em adotar. Só 4% dos pretendentes entram ali dispostos a levar para casa uma criança maior de 4 anos. Ao fim dos encontros, 20% já concordam com a idéia. A fixação em adotar uma criança loura e de olhos azuis provocava uma corrida aos Estados do Sul. Em Santa Catarina, no ano 2000, 80% dos candidatos eram de outro Estado. A Justiça baixou uma portaria garantindo a prioridade aos pais locais e, hoje, os de fora representam 49%. Em Goiânia, as famílias que insistem em apenas adotar crianças brancas precisam esperar uma fila de oito anos. Em São Paulo, cerca de 2 mil candidatos aguardam uma menina branca, de olhos claros, com até 1 ano de idade. Uma criança com essas características aparece para adoção apenas uma vez por ano, o que significa que o último da fila, que entrasse agora, teria de viver 2 mil anos para conseguir adotar.
Aumentar a família 25%
Ajudar alguém 15%
Outros 15%
98% dos pais que adotam são brancos e querem um filho da mesma cor
Em Salvador, o juizado tem uma forma criativa de estimular as adoções. Em Dia das Crianças, Natal, Ano-Novo e Semana Santa, famílias podem levar crianças do abrigo para casa. A idéia pode parecer cruel, já que a criança verá como é viver numa família e depois voltar. Mas, em 2003, das 66 crianças que saíram, 17 foram adotadas.
Para combater o preconceito, a Justiça do Rio tomou uma medida polêmica: desde junho, não é possível mais escolher cor, sexo nem idade. Além disso, uma devolução como a de Miguel significa a perda da carta de adoção. 'Meninas recém-nascidas e brancas sempre foram a preferência e tiravam a chance dos outros. Uma criança não é um objeto. A situação ideal seria a criança poder escolher, porque é ela que tem direito a uma família', diz o juiz da Primeira Vara de Infância e Juventude do Rio, Siro Darlan, autor da medida e mentor de uma campanha de incentivo à adoção em parceria com a Rede Globo. No Rio, até antes da medida, 14% dos pais adotivos queriam levar crianças com mais de 4 anos. Apenas 0,01% desejava uma negra.
Experiências como a do veterinário Paulo Homero Lontra, de 46 anos, e sua mulher, Lourdes Maria Gondim, de 44, mostram que a classe média já não vê a adoção apenas como um plano B. Com três filhos já crescidos, eles resolveram adotar mais um. 'Era um sonho antigo. Todo brasileiro deveria pegar pelo menos uma criança carente para criar, tendo ou não mais filhos', afirma Lontra. No começo do ano, souberam de quatro irmãos disponíveis, mas já em processo de adoção internacional. Em poucos meses, a família estava maior graças a Bruno, de 11 anos, Bárbara, de 9, Bruna, de 7, e Joana, de 5. 'O que sei é que, quando vimos os quatro juntos, a empatia foi imediata', diz Lourdes, agarrada a Bruna, que não saiu de seu colo um minuto durante a entrevista. Para Bruno, de 11 anos, que, já grande, não acreditava que ainda fosse ter uma família junto com os irmãos mais novos, a vida está 'muito feliz'. Embora esteja em ótima escola, tenha brinquedos e jogue bola em clube de garotos bem-afortunados da Barra da Tijuca, bairro de classe média alta, elege como a melhor coisa do mundo 'a noite, quando todos estão em casa juntos'.
História parecida vive o cantor Zeca Pagodinho e a mulher, Mônica. Pais dos adolescentes Eduardo, Louis e Elisa, adotaram há sete meses Maria Eduarda, ainda recém-nascida. 'Sentíamos falta de uma alegria na casa, essas crianças vivem na rua', reclama Zeca. 'Ela é minha filha, igual a todos, e tem me feito feliz como há muito não me sentia', diz.
Há 14 anos, antes do Estatuto da Criança e do Adolescente, filhos adotivos não tinham sequer direito à herança. Para adotar, era preciso ser casado, ter boa situação financeira e mais de 30 anos. As dificuldades burocráticas eram tamanhas que a adoção ilegal - quando uma mãe registra uma criança como sua, comunicando um falso nascimento - acabava sendo a alternativa mais rápida para muitos pais. 'Hoje isso praticamente não existe. Quem vier aqui e confessar esse crime tem a situação regularizada e o perdão da Justiça', diz Siro Darlan. Desde que, claro, o registro tenha sido consentido - não valem situações como a de Wilma Martins, condenada por ter seqüestrado Pedrinho e Roberta Jamile.
As novas regras permitem também que cidadãos como o professor Angelo Barbosa, solteiro, possa adotar uma criança. Há sete anos ele resolveu apadrinhar um menino de um orfanato, mas acabou por adotá-lo. 'Eu me surpreendi ao saber que era possível', diz Angelo. Os avanços são inegáveis, mas a situação ainda está longe da ideal. Não há estatísticas nacionais sobre adoção, nem troca de dados entre os Estados. O IBGE estima que cerca de 200 mil crianças e adolescentes não têm família. Em São Paulo, uma mãe que, por exemplo, abandona o filho numa lata de lixo só perde o pátrio poder depois de, no mínimo, três meses sem reclamar a criança.
Para a diretora-executiva do Centro de Capacitação e Incentivo à Formação de Profissionais (Cecif), a psicóloga Gabriela Schreiner, essa demora é um dos maiores entraves. 'Hoje os abrigos não são lugar de crianças órfãs, mas uma espécie de colégios internos de crianças carentes', diz. Algumas recebem visitas regulares de pais ou mães, que os mantêm ali por não ter condição de criá-los. Outras não têm pai ou mãe, mas são visitados por tios ou avós, que não os disponibilizam para adoção, mas também não os tiram de lá. Por fim, há também casos de crianças abandonadas durante anos, que deparam com algum parente justamente quando estão prestes a conseguir pais adotivos em potencial. Apenas 5% das crianças nos abrigos estão disponíveis para adoção. Uma criança passa, em média, três anos e sete meses em abrigos até ser adotada. Nesse tempo, ela cresce e vê diminuir a chance de ter uma família.
Levantamento do Cecif em São Paulo mostra que existem 36 interessados em cada criança de 0 a 2 anos. Com mais de 10 anos, a proporção se inverte: são 66 crianças para cada pretendente a pai. Projeto de lei do deputado João Matos (PMDB-SC) fixa em um ano o tempo para todo o trâmite da adoção e cria um cadastro nacional de adotandos e adotados. 'Hoje isso tudo é descentralizado, as regras são decididas pelas próprias comarcas. É preciso agilizar o processo', diz o deputado, pai de um filho adotivo.
13% dos casados não vão revelar ao
filho que ele é adotado
Além da idade, sexo e cor contam - e muito. Uma pesquisa da Universidade Católica de Pernambuco mostra que 98% dos candidatos a pais querem crianças brancas. Nessa segunda seleção natural, crianças excepcionais têm pouquíssimas chances. O militar Rogério Felipe Lins, de 41 anos, e sua mulher, a médica Lúcia Pedroso Barbosa, de 37, escolheram seus filhos adotivos na contramão. Uma amiga do casal tentava adotar uma criança quando as assistentes sociais ofereceram dois gêmeos de 3 anos, um deles cego. Ela declinou, mas ficou com peso na consciência. Ligou para os dois e contou a história. Pais de cinco filhos, a mais nova com 3 anos, Rogério e Lúcia planejavam ter outro. Uma noite, ela perguntou: 'Se eu ficar grávida, posso ter gêmeos, não é?'. Ele entendeu a mensagem. Hoje David e Daniel misturam-se aos cinco filhos biológicos com naturalidade.
O psicólogo Luiz Schettini Filho, pai de cinco crianças adotadas e autor de quatro livros sobre adoção, acredita que os casais deveriam estar mais atentos a suas falhas que ao passado da criança. 'O filho adotivo não pode ser uma forma de acabar com uma frustração', diz ele. Fernando Freire, coordenador dos grupos de apoio à adoção da Terra dos Homens, diz que é preciso repensar o conceito de adoção. 'Esse é um ato apenas para beneficiar um casal ou para beneficiar um casal e a criança? Porque, se for só uma forma de compensar o que a biologia não pôde fazer, trata-se de um equívoco', avalia.
A demora na adoção ocorre mais pela indecisão que pela burocracia. Em cerca de 20% dos casos, entre o primeiro impulso de adoção e o desfecho, passam-se mais de duas décadas. Outras adoções acontecem por acaso. Em 1984, a hoje governadora do Rio, Rosinha Matheus, apresentava um programa de rádio na cidade de Campos dos Goytacazes, no Rio de Janeiro, quando uma ouvinte procurou seu marido, Anthony Garotinho, dizendo que queria dar sua filha, de 9 anos. Sensibilizada, Rosinha resolveu ficar com a criança, na esperança de fazer a mãe mudar de idéia. Aparecida acabou criada pelo casal Garotinho, que também assumiu outras três crianças. 'Deus foi colocando no meu caminho e eu fui ficando com eles', diz a governadora, que, no entanto, só adotou oficialmente o mais novo, David, de 5 anos.
Em São Paulo existem 6.100 famílias
na fila à espera de um filho
Um temor constante dos pais é o de a criança adotiva ter problemas de saúde. A cantora Elba Ramalho enfrentou a questão. Mãe de Luã, de 16 anos, resolveu adotar Maria Clara, há um ano. O empresário Gaetano Lopes, marido de Elba, tinha problemas de fertilidade. Na primeira vez que viram Maria Clara, ela tinha apenas 15 dias e estava subnutrida, cercada de tubos. Ninguém sabia se sobreviveria. 'Ficamos com medo e fomos procurar outras crianças, aqui no Rio, mas aquela menina nunca saiu da nossa cabeça', conta Elba. Um mês depois, adotaram a menina, apesar de pediatras consultados terem aconselhado o casal a 'pensar bem'. Hoje, a menina é tão saudável quanto qualquer outra. 'Eu amo Maria Clara exatamente como amo Luã', diz. A cantora gostou tanto da experiência que lançará em setembro a ONG Associação Beneficente Bate Coração, voltada para a conscientização em torno da adoção.
Elba não é uma exceção. Adotar uma criança tem sido tão gratificante que não é raro pais adotivos se engajarem em ONGs ou associações. Outros partem para novas adoções e contagiam a família. Secretário da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção, Paulo Sérgio Pereira dos Santos tem dez filhos - sete deles adotados. Quatro de seus irmãos também têm filhos adotivos e, na contabilidade final, a família tem 25 membros não-biológicos.
Entre as crianças adotadas, o medo maior é o de não ser aceito pela nova família e sofrer mais uma rejeição. Miguel, o garoto que foidevolvido por não gostar de tomar banho, sempre erguntava aos pais, durante qualquer briga, se voltaria ao abrigo. 'Explicamos que ele vai levar bronca, vai ficar de castigo, vamos conversar com ele, educá-lo, diz o pai, Olavo. 'Mas ele é nosso filho para sempre.'
A BARREIRA DA IDADE
Como fica cada vez mais difícil encontrar um pai adotivo
De 0 a 2 anos 36 pretendentes para cada criança
De 2 a 5 anos 5 pretendentes para cada criança
De 5 a 7 anos 2 crianças para cada pretendente
De 7 a 10 anos 13 crianças para cada pretendente
Mais de 10 anos 66 crianças para cada pretendente
Fonte: Centro de Capacitação e Incentivo à Formação de Profissionais (Cecif)
#Principais passos para a adoção:#
Os quatro passos
Quais são as principais etapas do processo de adoção
1. O interessado em adotar deve ter mais de 18 anos e não ter nenhum antecedente criminal. O estado civil, a classe social ou a preferência sexual não têm peso no processo.
2. Depois de fazer a inscrição, o candidato passa por uma entrevista, faz uma dinâmica de grupo e recebe a visita do serviço social do juizado, que checará as condições da casa onde a criança ficará. Uma vez habilitado, recebe a carta de adoção, que em geral vale por um ano.
3. Localizada uma criança com um perfil compatível com o desejado, o candidato é contatado. Segue-se o chamado 'período de convivência', durante o qual o candidato faz visitas sucessivas à criança no abrigo e a leva para casa. Esse período dura cerca de um mês.
4. Com a aprovação do juizado, é emitida uma nova certidão de nascimento, em que os pais dão seu sobrenome ao filho e podem, inclusive, mudar o prenome da criança. Todo o processo leva, em média, seis meses, mas pode ser mais curto em caso de crianças maiores.
#Contar ou não a verdade#
''É o afeto que conta''
Psicoterapeuta diz que os pais não devem temer contar a verdade
A psicoterapeuta Maria Teresa Maldonado trabalha especialmente com crianças e famílias e é ligada a grupos de incentivo à adoção no Brasil.
ÉPOCA - Por que a adoção ainda é cercada de tanto preconceito?
Maria Teresa - As coisas estão mudando, mas parte é por vergonha, especialmente masculina, em relação à infertilidade. E parte por medo do passado da criança.
ÉPOCA - Toda criança adotada deve saber que não é filha biológica?
Maria Teresa - Sem dúvida. Mesmo os que são pegos ainda bebês devem saber.
ÉPOCA - Qual é a ocasião para contar?
Maria Teresa - Não há o momento certo. O que existe é um processo. Histórias contadas desde cedo, por exemplo, que falem de animais ou mesmo de crianças que perderam seus pais, mas encontraram carinho e conforto em outros, são interessantes. Outra boa forma de abordar o assunto é mostrar que há modelos familiares em que há filhos só do marido ou só da esposa que são amados e tratados da mesma forma pelo padrasto ou pela madrasta.
ÉPOCA - Períodos como a adolescência não são a melhor fase?
Maria Teresa - É demais esperar até a adolescência, um período já cheio de questões. Mas, se ocorrer e o jovem se revoltar ou procurar sua família biológica, isso deve ser encarado de forma tranqüila. Primeiro, a criança precisa saber que a adoção é um caminho de mão dupla. Os pais a adotaram, mas ela adotou os pais também. Aprendeu a amá-los e a conviver com eles. E isso é o mais importante de uma relação. A supervalorização da biologia é um erro. Se há laços de afeto, tudo vai dar certo.
Fonte: http://revistaepoca.globo.com 20/08/2004